Meu amigo Marco me fez prometer que eu escreveria um poema sobre São Paulo (um que falasse bem) e eu aceitei. Não será neste texto, mas já estou estudando para isso. Comecei a refletir sobre tantas coisas boas que São Paulo tem!
Acabou. Sim, acabou de passar um motoca cortando giro aqui na frente de casa. Sim, agora mesmo. Neste exato momento. E isso não é nada incomum. Já se passaram uns 15 segundos, eu já escrevi uma frase e ainda dá para ouvi-lo. Só para constar, esse foi literalmente o motivo de eu começar a escrever agora, às 22:28 de uma segunda-feira. A oculta arte de cortar giro.
Não sei nem por onde começar. É tão difícil expressar o sentimento profundo que me acomete quando um ser da espécie humana acha que é uma boa ideia retirar o escapamento de sua motocicleta e passar pelas ruas da cidade girando seu punho em mais ou menos 45 graus, não tendo nada transitando por suas sinapses cerebrais a não ser:
Ontem mesmo estávamos na casa de nossos amigos Victor e Isa, que estão com a bebê Olívia, de 20 dias. Eles tinham acabado de fazê-la dormir, com muito custo. Então, um distinto cavalheiro, em posse de sua máquina, passou fazendo esse doce gesto de nobreza. É difícil expressar quanta gratidão invade nosso coração nesses momentos; não só o coração fica quentinho, como também a face. Sentimos o calor subir das regiões mais aquecidas do coração para o rosto, em erupção. Não bastando um cavalheiro, foram dois, num intervalo de poucos segundos entre eles.
É tanta coisa boa que passa pela cabeça numa hora dessas.
É sério. Uma das coisas que mais acende minha ira é motoqueiro cortando giro. Depois de imaginar coisas indescritíveis por alguns segundos, eu tento me lembrar de que o produtor daquele barulho infernal é um ser humano, tem uma família, sentimentos, frustrações, necessidades… (não consigo ir muito além disso). Às vezes, como agora, tento simplesmente me perguntar: POR QUÊ?
Pode ser que seja uma pura expressão de raiva, um dia ruim e “já que meu dia foi ruim, eu quero que o de todo mundo seja também!” Ou talvez uma forma de protesto. Não consigo imaginar algo que vá além disso, como: “Ah, acho que minha motocicleta está engasgando, preciso ajudar a desobstruí-la com esta manobra voraz!” Pode ser só zoeira também, algum tipo de humor quebrado, sabe? “Cortei giro porque eu posso! Humor! risos, risos, risos.” Mas... mas... ahh, não sei. Não faz sentido de nenhum ângulo. Enquanto isso, a mãe que acabou de colocar seu filho para dormir ri como quem encontrou a alegria face a face pela primeira vez.
Eu já tentei me acostumar, achei que passaria logo, mas a verdade inescapável é que isso é coisa desta era caída, uma expressão de revolta, indiferença desconexão de todas as partes. Não importa o que aconteça, debaixo do sol sempre existirão cortadores de giro, talvez eu nunca me acostume, seja uma incapacidade minha… Certamente eu preciso de um pouco mais de filtro solar (ou abafadores de ruído) para essa vida debaixo do sol da qual Salomão falou em Eclesiastes.
(Desta parte pra baixo acaba o desabafo e começa um surto de consciência social.)
No entanto, ao compartilhar as prévias deste distinto texto com meus amigos no escritório, o sábio Raul me abriu os olhos para algo que, até então, eu não havia percebido: os motoqueiros não cortam giro para mim, para a mãe que acabou de colocar o bebê para dormir ou para quem quer que se incomode com isso; eles cortam giro para outro público — OUTRO MOTOQUEIRO.
O relato do meu amigo Raul foi o seguinte (parafraseando): "Olha, rapaziada, eu já estive, antes de me converter, no âmbito social refinadíssimo dos pixadores. E posso dizer com propriedade: pixadores não pixam para nós, que nos incomodamos com isso; eles pixam para que outro pixador veja." Penso que as opções que apresentei anteriormente são igualmente consideráveis, além de tantos outros fatores, mas o engraçado é que a mesma lógica que Raul apresentou se aplica aos cortadores de giro e, pasmem, a todos nós.
Estamos todos estranhamente perseguindo a satisfação dessa nossa necessidade de pertencimento. Um corte de giro talvez seja apenas um pedido de “Só quero ser aceito”. Mas seria essa uma das formas mais odiosas de se fazer isso? Sim. Isso indica que todos nós temos nossa própria maneira de "cortar giro"? Ao que parece, sim. Talvez eu esteja procurando formas de sentir compaixão pelos vilões da minha paz? Certamente. Mas, prossigamos.
Numa nota de rodapé do livro Uma Longa Obediência na Mesma Direção, de Eugene Peterson, no capítulo sobre comunidade, ele faz a seguinte citação:
Philip Slater, em seu estudo penetrante da maneira como os (norte-)americanos vivem juntos, diz que todos nós temos um desejo e necessidade de comunidade - "o desejo de viver em confiança e cooperação fraterna com os semelhantes numa entidade coletiva total e visível. É fácil apresentar exemplos dos muitos modos como os americanos tentam minimizar, evitar, ou negar a interdependência sobre a qual todas as sociedades humanas se baseiam. Procuramos uma casa particular, um meio de transporte particular, um jardim particular, uma lavanderia particular, lojas de "self-service", e práticas "faça você mesmo" de todos os tipos. Uma enorme tecnologia parece ter proposto a si mesma a tarefa de tornar desnecessário um ser humano ter ocasião de pedir qualquer coisa de outro enquanto empreende seus afazeres cotidianos... Buscamos cada vez mais privacidade, e sentimo-nos mais alienados e solitários quando a conseguimos... Nossos encontros com outras pessoas tendem cada vez mais a ser competitivos como resultado da busca por privacidade. Cada vez menos nos encontramos com nosso semelhante humano para compartilhar e trocar experiências, e cada vez mais o encontramos como um impedimento ou estorvo: congestionando o trânsito quando estamos com pressa de chegar a algum lugar, enchendo e sujando a praia ou parque ou jardim, cortando fila no supermercado, pegando a última vaga do estacionamento, tirando. nossa visão, etc. Por termos cortado tanta comunicação de um com o outro nós colidimos um com o outro, e assim uma porcentagem cada vez maior de nossos contatos interpessoais são ásperos, irritados". Pursuit of Loneliness (Bostom: Beacon, 1970), págs. 7,8.
Principalmente nas grandes metrópoles, temos a tendência de desenvolver essa “mentalidade blasé”, uma insensibilidade adquirida que seria uma resposta defensiva contra os infinitos estímulos da cidade abarrotada. Então, entramos no enredo descrito na citação acima: despessoalizamos o outro, tornando nossas interações um tanto quanto “Eu-Isso” e nada “Eu-Tu”. Isso acontece tanto da nossa parte com relação ao motoqueiro quanto da parte dele com relação a todos ao redor.
Uma resposta a isso tudo, que vejo daqui de onde estou, é uma comunidade plural que põe lado a lado motoqueiros cortadores de giro, mães de recém-nascidos, políticos e vendedores de doces, filósofos e analfabetos, todos submetidos a um mesmo Senhor, uma mesma forma de vida e comunidade proposta, e melhor ainda: que existe para além desta vida.
Somente assim posso amar os "motocas" de escapamento furado: quando os enxergar para além do seu barulho e nos encontrarmos diante de Cristo — eles em sua humanidade e eu na minha — antecipando o dia em que teremos uma paz comum e imperturbável.
Minha esperança é que, quando isso aqui passar e a restauração de tudo começar, todos os motoqueiros sejam maneiros, existam escapamentos irretiráveis ou, pelo menos, eu esteja do lado dos que se alegram com o barulho! É, certamente estarei! P.S.: ESTÁ LIBERADO CORTAR GIRO NO MILÊNIO!
QUE TEXTO! misto de risadas, identificação e lágrimas no final. Eu também odeio corte de giro!!!!!
O começo do texto me fez rir muito e não esperava finalizar clamando Marata.
obs: eu não fazia ideia que essa preciosa ação chamava "cortar giro", sempre chamei de "Ran dan dan dan"